quarta-feira, 22 de abril de 2009

As quatro torres - Capítulo I


"As cores do deserto, a noite, sempre me impressionaram. O vento do norte me aconchega como os lençóis de algodão egípcio no verão. O vento corre por minha face e procura outros para beijar. Meu beijo se dissemina em pequenas partículas e sopra por todo o deserto".


"O que você acha Abdul-Haqq? Quantas faces você já beijou?"


"Se meu beijo encontrou outros através do deserto, ficarei grato. Se muitos ou ninguém beijou também ficarei grato. Os meus ventos Halim vem do sul. Se eles os teus encontrarem, ficarei ainda mais grato".


"Sou grato pelos ventos, contudo, mais grato por tua amizade".


A lua quase desaparecendo pelas dunas em movimento testemunhou o abraço de Halim e Abdul-Haqq. As longas mãos de Halim preenchiam o corpo frágil de Abdul-Haqq. As túnicas desérticas ainda crepitavam o sopro do vento do norte. A fogueira que neste ponto quase se extinguia, mal podia esperar por madeira nova e cuidados especiais. O simbolismo das cores de tom avermelhado compreendia mais do que os amigos, parados, em profunda contemplação, que as brasas quando próximas são poderosas, separadas, entregues ao próprio destino.


"Abdul, alimente a fogueira. Amanhã teremos um longo dia. Badr ainda esta muito distante de nós".


Abdul sabia que a peregrinação que percorria não o levaria a um lugar santo. Ao contrário, levaria a destruição de seu senhor. Seu coração estava amargurado e os olhos não conseguiam descansar.


O som do fogo relembrava o poder do mais temível dos elementos, mas tanta força não suportava a frieza da água ou a constância da terra. Seu mestre era fogo, mas buscava o elemento água.


A cabana há pouco havia sido fechada, mas Abdul preferiu contemplar as estrelas. Talvez elas possuíssem as respostas.


"Por que será que teu brilho não contempla a todos?" – perguntou Abdul enquanto olhava a estrela chamada de Hambal.


"Apesar de teu escravo, de mim escapaste. De mim injustiçada sorte foi roubada. Hambal deixa de brilhar sobre meu mestre. Esconde-te e deixa que Hatim o governe".


"Por que os justos não vêem? Por que não percebem? Por que não suspeitam o mal"?


"Não sei se é uma bênção ou uma maldição prever o futuro. Mas para mim, este dom tem sido um fardo".


A noite fertilante do deserto consumia Abdul. Amanhã o destino os encontraria. "O destino não se muda, mas as escolhas podem ser transformadas" – pensou Abdul antes de colocar sua cabeça na sela de seu camelo.


Seu corpo pedia descanso, mas sua mente não o deixava descansar. Como poderia livrar seu mestre dos augúrios que se anunciaram. Primeiro, o jarro de cristal de Sabá, depois, a menstruação negra de Lakhsmi. O mal preparava um encontro com Halim. Encontro que seu mestre desconhecia. Abdul virou seu corpo para o oriente e encontrou os olhos da Crocuta. O corpo de aproximadamente noventa centímetros caminhava lentamente ao seu encontro. Os passos curtos, semelhantemente a de um humano, para não dizer de uma mulher, destacavam as mandíbulas que se abriam em um mantra mágico. Abdul olhava aquele animal como se a reconhecesse.


"As hienas crocutas andam em manadas" – pensou Abdul, mas aquele animal estava sozinho.
Seu pêlo negro a distinguia das crocutas normais. O olhar era límpido, provocante e até certo ponto inocente, mas suas intenções não eram boas.


"O que você deseja?" – perguntou Abdul.


A crocuta parou e a brasa crepitou mais alto. Abdul conhecia os velhos truques de Hoodoo, ou melhor, conhecia quem os utilizava. O animal, por um momento, parecia querer travar contato. Seus olhos, por pequenos instantes, comunicaram uma mensagem incompreensível a Abdul. As manchas no corpo do animal enganavam os olhos de Abdul que hora apresentava-se como um tom avermelhado e hora com sombrio roxo. A crocuta desviou-se de Abdul e retrocedeu para o oriente. Os passos desta vez eram mais rápidos, como de alguém que fugia, que houvesse sido descoberto. Entretanto, surpreendentemente, a crocuta parou e voltou-se mais uma vez para Abdul. Seus olhos se encontraram, ao passo que Abdul declarava:


"Nós nos veremos em breve".


A crocuta entrava na escuridão sem mostrar emoção ou sentimentos. Apenas seu uivo foi reconhecido por Abdul.


"O uivo da morte".


Halim levantou sobressaltado devido a um pesadelo que tivera com Thurayya.


"Adbul, creio que algo muito ruim deverá acontecer com Thurayya. Durante meus passeios com Hipnos, minha mente se elevou ao grande pátio na entrada das quatro torres. Thurayya encontrava-se possuída por algum poder das trevas. Suas mãos estavam elevadas para Badr, os lábios recitando algum tipo de feitiço. Ela estava vestida como as sacerdotisas do baixo Nilo, camisolas de puro algodão com aquelas terríveis serpentes de ouro enroladas em seus braços".
"Mestre acreditas que tivestes uma visão?"


"Se tive uma visão, não sei, mas não posso negar a realidade das imagens."


"Halim, prossiga".


"As serpentes repentinamente se vivificavam e morderam os olhos de Thurayya. O grito de Thurayya acordou todos nas quatro torres, mas quando cheguei mais próximo fiquei estupefato com o que vi".


"O que foi que viu Halim?"


"Thurayya estava escura como a noite, sem vida, os cabelos brancos e os pés roxos como a lótus do oriente".


"Halim posso perguntar-te algo?"


"Claro, Abdul-Haqq" – respondeu Halim.


"Para que torre estava Thurayya olhando ?"


"Para a torre sul. A torre desocupada".


"Halim creio que neste sono, foi o irmão gêmio de Hipnos que te acopanhou."
"Tânatos ?"


"Sim, Tânatos, o filho de Nix".


Halim sabia que Abdul não era homem dado a superstições. Suas palavras eram carregadas de emoção e sinceridade. Os pensamentos de Halim voltaram-se para a sua casa a qual era conhecida pela comunidade de Zakiyyah como as quatro torres.


"Halim, ainda falta muito para o sol se levantar. Volte para a cabana e descanse. Amanhã será um longo dia".


"Abdul, meu amigo, as horas da noite para mim já passaram e ainda que o sol se levante, minha mente estará em escuridão".


"Mestre descanse. Amanhã o senhor precisará de forças para enfrentar o seu destino".


"Meu destino?"


"Sim Halim".


"Como o sabes ?"


"Porque meu destino é o seu destino. Meu passado encontrou o teu passado, mas meu futuro não será igual ao teu".


"Como poderá meu destino ser seu se meu futuro não te pertence ?"


"Como poderá nosso deus julgar nossas escolhas?"


"Não poderá".


"Assim Halim, deixarei que o próprio destino te dê a resposta".


Abdul nunca deixou de surpreender Halim com sua sabedoria. A sabedoria de pessoas simples que aprenderam a interpretar a vida através da natureza. O fluxo das diferenças que se harmonizam em um grande todo. As escolhas estavam categorizadas nestas pequenas diferenças. O ser supremo não poderia ou poderá fazer as escolhas, mas certamente poderia prevê-las. Todos a este ponto o poderiam, menos Halim.


O sol despontava e os camelos prosseguiam para Badr.



...
by Augusto Filho

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